* Cinco Vezes Cinco, 25 Poemas – por Francisco Pamplona.
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5X5/25 POEMAS
Fátima Oliveira
Colecção Sol/Poesia
Lisboa, 1992
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Recensão de Francisco Pamplona
in
Na SOL XXI, Revista Literária, Nº 9
Junho 1994
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“A(E)FECTIVIDADE
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Com “Cinco X Cinco 25 Poemas”, vem Fátima Oliveira afirmar-se como uma das mais prometedoras vozes líricas do actual panorama literário português. Nesta colectânea, logra, a autora, a conciliação de aparentes contrários: a afectividade auto-referencial e a efectividade estésica, na leitura, pelo receptor. Para lá desta fruição – que decorre da leitura linear – dos textos, estes são urdidos, na sua tessitura, por uma sábia e fina teia de linguagem que consegue o, igualmente difícil, equilíbrio: entre a forma do conteúdo e a forma da expressão.
Na primeira secção “Cinco poemas narrativos”, a A. procede a uma miticização de situações concretas, elevando-as arquetipicamente a modelos exemplares – perpassados de algum desengano e ironia: a princesa loura e o rei moreno, a dançarina e o bobo, ou o viandante e o samaritano [i].
Segue-se a secção “Cinco poemas sobre o caminho”, nela se incluindo o poema da p. 17, que principia assim: “Só sei falar dos teus olhos Até penso ter perdido/toda a imaginação e digo/que são únicos os teus olhos/nem sequer sendo os mais belos”. Este poema é a plena justificação daquilo que afirmámos logo de início; há uma perfeita adequação linguístico-formal que serve conteúdos semânticos carregados de afectividade e com uma poderosa capacidade de – após o afecto primário e após a escrita – gerarem um afecto em 3º grau; este, o mais relevante dos três – “na dor lida sentem bem” –, resultante do efeito produzido pela leitura [ii].
Da p. 18, transcrevemos na íntegra: “Com toda a sua força prendeu-se o barquito à fateixa/Segurou-se resistiu à corrente./E a maré subiu e desceu/subiu e desceu.//Hão-de chegar as marés-vivas//hão-de afogá-lo./Será então maldita a fateixa benfazeja/cortada das amarras./Fundida com as algas/a apodrecer./No fundo do mar”. É um poema em que se joga a contraposição pretérito/futuro. No primeiro bloco (a primeira estrofe), há todo um jogo de assonâncias dominadas por is, us, e es fechados – envoltos na reiteração subiu e desceu, subiu e desceu. O segundo bloco é dominado pelo sintagma maldita a fateixa benfazeja, de pendor oximórico, assonantado e desautomatizador; nele confluem inúmeros as abertos que, pela sua abertura, acabarão por sugerir um abismo – o fundo pego simbólico do mar [iii].
“A seguinte secção é de “Cinco poemas sobre o espaço”. Nela é notável o poema da p. 23, glosando o topos do devir cíclico: “Quando passar a borrasca/ao céu há-de voltar a eterna transparência/luminosa” [iv].
“Cinco poemas de nada” é a secção subsequente, constituída por pequenas quadras aparentemente simples, mas de uma retorização rica; poemetos de grande contenção e alcance, usando um léxico depuradoe exacto [v].
Da secção final “Cinco poemas sobre o tempo”, como aliás da anterior, sobressai o vector temático fundamental – quer-nos parecer – desta Poesia. Trata-se da sacralização do amor como símbolo místico do erotismo subjacente; daí resulta um desmesurado alargamento conotativo do discurso-prece, que se vaza em verdadeiras fórmulas mágicas, porém sóbrias. “Deste rio do meu discurso só Tu és a foz”, (sublinhado meu), p. 36 [vi].
Terminaremos pois como começámos, ousando afirmar, sem exagero, estarmos perante Grande Poesia: rigorosa na sua elaboração e, acima de tudo, dadivosa de deleite estético ao leitor.”
[i] Poema da pág. 11
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Animal aflito soltou o viandante intenso grito
em ultra-sons. Ouviram-no vindo de longe os ouvidos
de cão-pastor do samaritano. Por isso
tranpôs barrancos saltou silvados correu
ao vale.
Encontrou-o. Aninhado no côncavo de uma azinheira
dilacerado pelos assaltos das alcateias.
Lambeu-lhe as feridas. Dos braços fez a maca
onde o reclinou. Deu-lhe o respirar e o pulsar
do coração.
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Vieram as bruxas. E os feiticeiros. Cercaram-nos
em lances diabólicos de guizos esgares e alaridos.
Contaram histórias mirabolantes daquele duo.
Sequestros e violações que teriam praticado. Disseram
com suas bocas desdentadas e pestilentas
que assaltavam viajantes e romeiros que aos seus
cadáveres roubavam dobrões de oiro jóias
e adornos.
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Deixá-los falar. Até que se cansem. Que falem
que falem até que lhes caiam as mandíbulas chupadas.
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Todo o samaritano sabe que não será nunca em parte
alguma o herói do ano.
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[ii] Poema da pág 17:
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Só sei falar dos teus olhos Até penso ter perdido
toda a imaginação e digo
que são únicos os teus olhos
nem sequer sendo os mais belos
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Mas é neles que desponta o brilho de um sorriso
ao acordar Sorriso dourado lago de ternura onde
me espelho
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Dos teus olhos nascem os braços que me enlaçam
o corpo que me beija Nos teus olhos se expande
um mundo sempre novo convidando-me a entrar
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Mergulho nos teus olhos como numa primavera
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[iii] Poema da pág 18:
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Com toda a sua força prendeu-se o barquito à fateixa
Segurou-se resistiu à corrente.
E a maré subiu e desceu
subiu e desceu
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Hão-de chegar as marés vivas
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Hão-de afogá-lo.
Será então maldita a fateeixa benfazeja
cortada das amarras.
Fundida com as algas
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a apodrecer.
No fundo do mar.
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[iv] Poema da pág. 23:
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A vaga que ora em desespero arranha a pesada
abóbada de cinzas do céu
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já foi onda cantando na praia.
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Quando passar a borrasca
ao céu há-de voltar a eterna transparência
luminosa
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Ociosas hão-de voltar
as canções à praia
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[v] Poema da pág 28:
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Somos vento e somos vaga
Somos rosa e somos rio
Somos brasa e somos asa
Somos pó e temos frio
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[vi] Poema da pág. 36:
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Tinha tanto para fazer
mas sentei-me a escrever
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Tinha a casa para varrer Tinha a louça para
lavar Tinha as contas para fazer Tinha a roupa
para passar
mas sentei-me a pensar
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Deste rio do meu discurso só Tu és a foz
Tomaste-me o pulso
Deste-me a voz
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Publicado por Myriam Jubilot de Carvalho
Dia 15 de Outubro de 2013, pelas 21h
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