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Apresento em seguida o Prefácio da obra
KaPulana – tecido de Moçambique – a verdadeira história
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Como este texto é um pouco longo para ser lido no ecran,
vou reparti-lo em pequenos segmentos.
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Prefácio |
O têxtil ‘Dutch Java’, imitação holandesa, oitocentista, do tecido ‘Java Print’, ou “batik” – originário da ilha indonésia de Java – é a origem do pano que se designaria como “KaPulana” na capital de Moçambique, a partir do século XIX. (Kraveirinya 2017, 23)
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Nesta sua obra, Mphumo Kraveirinya debruça-se sobre a origem, sobretudo indonésia, e a actualidade, europeia, dos tecidos conhecidos em Portugal, e no sul de Moçambique, como ‘KaPulana’ – ou Capulana na grafia à portuguesa. Pelas suas cores exuberantes, a Capulana contrasta vivamente com o vestuário tradicional da mulher portuguesa, muito mais sombrio.
Sobriedade, quem sabe, herdada dos tempos mouriscos do al-Andaluz, situado na periferia ocidental do império abássida:(2) o vestuário preto, tradicional, virá da influência xiita (muçulmana), porventura reforçada mais tarde pela sobriedade inquisitorial cristã.
Aliás, conforme nota Mphumo Kraveirinya, “poderemos encontrar algum paralelismo à cultura persa xiita (Shiraz) em relação ao vestuário feminino totalmente negro da costa oriental de África – o tradicional ‘Buibui’ de Mombaça e de Zanzibar, e de Muhipiti essura (aliás Ilha de Moçambique), encontrado pelos portugueses nos finais do século XIV e depois pelos holandeses, a partir do século XVII, aquando do seu avanço para o Oriente, via Cabo da Boa-Esperança, no sul de África, e passagem por Muhipiti.”
Na realidade, o autor oferece-nos uma narrativa da viagem da Capulana por mares já dantes navegados, mas neste caso a partir do oriente e em direcção ao ocidente. A beleza destes tecidos de algodão, e o conforto que o algodão proporciona, exerceu grande atracção sobre africanos e europeus, desde 1846.
Segundo o autor, tudo teria começado quando um jovem comerciante Holandês, Pieter Fentener van Vlissingen de Amsterdão, aceita o desafio do tio, Fredrik Hendrik, para investir na área têxtil numa colónia holandesa na Ásia – na ilha de Java, Indonésia, nas chamadas ‘Índias Orientais Holandesas.”
Produzir em série uma imitação do estampados (a cera), conhecidos como ‘Batik de Java’ sairia mais barato se substituindo os meios artesanais tradicionais por meios mecânicos. Estava-se na era da inovação da revolução industrial. Essa concorrência desleal não vingou entre os nativos indonésios.
No fundo, certamente “uma questão de rejeição identitária, sociológica e psicológica, de uma cultura visual endógena em relação a uma estrangeira,” como o autor frisa no decurso da sua narrativa. Esses tecidos que já não obedeciam ao design e técnica do ‘Java Print’ original, ganharam o apreço das populações africanas, e disso tirariam partido mais tarde, os comerciantes indianos da África Oriental e Central, através do Uganda e do Congo, fronteiriços a Tanganica, e por sua vez a Zanzibar, e Moçambique.
Uma vez que ganhava mercado em África, Vlissingen e posteriormente os seus herdeiros adaptaram-se às exigências do gosto dos seus novos destinatários conforme nos é revelado nesta “verdadeira história” da Kapulana.
Actualmente, a Kapulana globalizada conquistou lugar na indústria da Moda. Desde há muito que sabíamos como é poderosa esta indústria que movimenta milhões, pois emprega grande leque de profissões, desde a produção de tecidos à comercialização.
Mas, a leitura da obra que ora apresentamos, e a pesquisa adicional que fizemos para a elaboração deste prefácio, deixaram-nos surpreendida. Pois, segundo o relatório de 2016, do senador do Congresso dos Estados Unidos, Martin Heinrich, (3) só em 2015, os consumidores norte-americanos despenderam 380 biliões de dólares em tecidos de moda. E, em França, por exemplo, esta indústria gera mais riqueza financeira do que as da aviação e automóveis em conjunto.(4)
De tudo isto se ocupa Mphumo Kraveirinya, que há muito desejava publicar este seu estudo sobre o tecido Capulana de Moçambique «para desvanecer confusões de protagonismos alheios, sobre a origem da kaPulana, a começar pelo nome (…)», conforme nos confidenciou em tempos. (p. 23)
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Não sabemos o que mais admirar neste autor. Se a sua capacidade de comunicar o seu vasto saber, se o seu inabalável amor à sua terra natal, Moçambique.
Conhecedor como poucos dos meandros dos costumes, da Etno-História, e da História contemporânea da terra onde nasceu, Kraveirinya é incansável na divulgação dessas memórias “para que não se percam com apagões ideológicos mal-intencionados.”
Por outro lado, é estudioso e entende as línguas Jonga, em extinção, e o Suaíli, que comporta cerca de 150 milhões de falantes, actualmente. Pesquisador eclético de outras línguas, é através do que ele chama de “etno-etimologia” que busca paralelismos comuns, culturais e universais.
Exemplo é o seu estudo do antigo idioma Emacuá (padrão), o mais falado de Moçambique, estimado em cerca de 12 milhões de falantes, e suas 9 variantes, entre os rios Rovuma e Zambeze, e em Maputo.
Apaixonado pelo imenso Continente Africano, é através da sua escrita esclarecida que o autor tenta dar a conhecer os detalhes do vasto e trágico caleidoscópio de injustiças da expansão europeia, nomeadamente a portuguesa, que iniciou o tráfico negreiro no Atlântico, exponenciando a prática da Escravatura. E também toda a História Colonial, e suas posteriores sequelas. Sem esquecer a expansão árabe em terras africanas.
Nesse âmbito, segundo este autor “as ilhas de Zanzibar e de Muhipiti (ilha de Moçambique) foram mercados árabes sunitas e persas xiitas (Shiraz) de mercadorias, de tecidos, e de escravos.”
No caso concreto da Capulana, entrelaçam-se a História, em si, e a história dos próprios antepassados do autor, do seu lado africano baNto, pois o nome desse tecido ou pano, tão apreciado por europeus como por africanos, recorda o nome do rei Pulana (ou Polana à Portuguesa), da família dos reis Mphumo – que co-habitava com seu povo no promontório adjacente à Baía dos Mphumos, hoje em dia designada como Baía de Maputo.
Terrenos das povoações ‘kaPulana’ ou do soberano Pulana que viria a ser espoliado e ocupado para a construção do Hotel Polana, a partir de 1922, segundo o autor deste livro que lemos com agrado.
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Quem é, pois, Mphumo Kraveirinya? É geneticamente um luso-moçambicano, Moçambicano de nascença (1947). Ou como ele próprio costuma dizer com graça, “duplamente moçambicano, por ter nascido na Ilha de Moçambique e na colónia portuguesa do mesmo nome”.
Um moçambicano português, que “nunca precisou de pedir a nacionalidade portuguesa,” uma vez que nasceu em tempo colonial, quando as antigas colónias eram designadas como “províncias ultramarinas”, integrantes “de jure” (!) do território nacional europeu, português.
Portanto, por direito natural de sangue e de solo: jus sanguinis et jus solis, um homem completo, sem que o seu coração ficasse “dividido” nessa diversidade cultural. Ou, nas palavras do próprio Mphumo Kraveirinya, ter – uma Pátria baNto africana, Moçambique; uma Mátria europeia ibérica, Portugal; e uma Fratria mestiça sul-americana, o Brasil.
Mphumo Kraveirinya, além de investigador da História social de Moçambique, é ainda dramaturgo, poeta, autor de romance de não-ficção (investigação) e de contos para crianças. É também jornalista, colaborando pro bono com o jornal ‘O Autarca’ da cidade da Beira – Sofala, Moçambique, dando-nos a conhecer excelentes crónicas de análise político-social e de relações internacionais num mundo crispado.
É Doutor em Ciências da Cultura, especialização em Comunicação e Cultura, pela Universidade de Lisboa. Sociólogo e investigador, cujos centros de interesse são o estudo aprofundado da Diáspora, forçada, Africana, e das implicações da disseminação da alimentação tropical com a Escravatura, e posteriormente, com a Economia globalizada do mundo actual.
Como artista plástico, no seu exílio político em Zâmbia e Tanzânia (1967-1972), Mphumo Kraveirinya fez parte da equipa do DIP – Departamento de Informação e Propaganda da Frente de Libertação de Moçambique, concretamente na elaboração da estratégia e táctica de acção psicológica para mobilização das populações moçambicanas na resistência ao colonialismo português e de sensibilização internacional para a causa em prol da independência. A sua participação como ‘cartoonista’ de panfletos e desenhador gráfico, e de mapas militares, foi proveitosa.
Efectuou maquetizações, capas, e desenhos originais para livros de Poesia de Combate e História de Moçambique, nomeadamente a primeira de sempre, publicada em Dar-se-Salam pela Frelimo, no Instituto Moçambicano, em 1970, com apoio de organizações nórdicas europeias. Mais tarde, outro livro de História de Moçambique, em que participou, foi publicado em 1982 pelo Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane – UEM. Na segunda edição, de 1988, por algum motivo que desconhecemos, foi eliminada da ficha técnica essa participaçãoo de arranjo gráfico e de recolha de ilustrações de obras da sua colecção.
O detalhe que mais me fascina na personalidade e no currículo deste autor, ainda pouco reconhecido em Portugal, é a sua versatilidade e perseverança. Mphumo Kraveirinya é ainda o autor do monumental mural épico realizado em 1979 na Praça dos Heróis, em Maputo, e um dos maiores do mundo. Ainda que omitida a sua autoria em Moçambique, esta obra mereceu o interesse de uma académica britânica, a Professora Polly Savage, da Universidade de Londres. O seu capítulo 2. Os Heróis – da sua tese de de PHD (Doutoramento),de cerca de 94 páginas, foi inteiramente dedicado ao estudo, interpretação e restituição de autoria de toda a obra artística e percurso no exílio anti-colonial de MpHumo Kraveirinya, aliás João Craveirinha, Jr.
Lisboa, Novembro de 2017
Myriam Jubilot de Carvalho
Lic em Filologia Românica. Professora jubilada.
Pesquisadora da História da Literatura e do paríodo do al-Andalus. Poetisa e Contista.
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NOTA: Entre o seu percurso pelo exílio anti-colonial em Botswana, Zâmbia, Tanzânia, Quénia (1967-1972), e a realização da pintura Mural (1979), Mphumo Kraveirinya foi dissidente da Frelimo. Segundo o autor e confirmado por outras fontes, foi por essa sua ‘dissidência’ torturado e condenado a trabalhos forçados e à morte nos “campos de reeducação de máxima segurança”, entre 1975-1976, em Nachingwea (sul de Tanzânia), e Niassa (norte de Moçambique), dos quais é o único sobrevivente do grupo de que fez parte, em 1976. O Presidente de Moçambique, Samora Machel, amnistiou-o em abril de 1976.
(Vide notas, pp 119-120, de excertos de memórias sugeridas para inserção neste livro. Poderão esclarecer certas omissões à sua obra em Moçambique.)
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REFERÊNCIAS :
- Batik: https://en.wikipedia.org/wiki/Batik
- O Poder Abássida, Sunita, perseguia os Xiitas e forçava-os a refugiarem-se nas periferias do império árabe. Daí que a islamização dos territórios afastados dos centros de poder, como por exemplo a Península Ibérica, tenham sofrido em grande parte, a influência xiita. [Eventualmente na África oriental essa influência seria trazida pelos persas Shiraz. Vestígios visíveis na ilha de Zanzibar]
(Professor Abdallah Khawali, curso “A Identidade Islâmica de Portugal, séculos VIII-XIII,” 2009 e 2010)
- Made in Holland: The Chanel of Africa
http://www.messynessychic.com/2015/10/30/made-in-holland-the-chanel-of-africa/
- Senator Martin Heinrich, September 2016.
The Economic Impact of the Fashion Industry
https://www.jec.senate.gov/public/index.cfm/democrats/reports?ID=034A47B7-D82A-4509-A75B-00522C863653
- 150 milliards d’euros! La mode crée plus de richesse que l’aviation et l’automobile réunis – http://www.latribune.fr/economie/france/150-milliards-d-euros-la-mode-cree-plus-de-richesse-que-l-aviation-et-l-automobile-reunis-605060.html
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Publicado por
© Myriam Jubilot de Carvalho
Dia 5 de Abril de 2018, pelas 2 h 15m
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