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Encontros
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Anos 80, já para o fim da década.
Avião Bruxelas – Oslo.
Senta-se ao meu lado uma velhinha, magrinha, cabelo cinza já ralo, ondulado.
Vê que estou a ler o magazine littéraire, e comenta comigo que falo francês. Digo-lhe que é a minha segunda língua.
Pergunta-me porquê o magazine littéraire…
– Estudei literatura – respondo.
Pergunta-me se sou professora.
Que sim, que sou professora de crianças entre os 10 e os 12, ou 13, mais ou menos.
– Então – diz ela, sorrindo para mim – essa literatura tão avançada não lhe faz falta, profissionalmente.
– Pois não – tenho que concordar. – Mas não me interesso só pelas minhas aulas, tenho mais interesses na vida – Ela sorri – Interesso-me por literatura em geral…
–Você deve ser uma professora interessada – interrompe-me ela, com um olhar perspicaz.
E começa um longo diálogo! Tínhamos muitas coisas em comum! O modo de encarar a disciplina, o prazer em trabalhar com crianças…
– Você não encontra muitas professoras iguais a si, pois não?
E foi a minha vez de sorrir… Pergunto-lhe por que faz tal dedução…
– Experiência, ma petite – diz-me ela.
Ela também tinha sido professora. De língua materna, tal como eu.
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…mas não era belga; era polaca. Casada com um norueguês, de quem tinha três filhos. Viviam na Bélgica, onde o marido tinha negócios, mas ia agora para Oslo ter com todos eles. O marido estaria à espera dela, à chegada.
…polaca. Foi apanhada pela Guerra. Teria aí uns 17 anos quando a guerra acabou… Era muito nova…
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Falou-me do campo (de concentração). Viu o meu trejeito de horror, e levantou a manga do braço esquerdo. Mostrou-me o número – não estava a inventar histórias.
Mostrou-me o BI especial para as vítimas do Nazismo, com cartão que permitia viajar graciosamente. O marido estaria à espera dela no aeroporto, em Oslo – repetiu.
Fiz-lhe a pergunta mais óbvia que se pode fazer, provavelmente a mais estúpida também: Perguntei-lhe como se resiste a uma barbaridade daquelas…
Encolheu os ombros:
– As raparigas comunistas eram excepcionais. As lituanas. Eram estóicas, disciplinadas. Não criavam confusões. – E continuou – Fui apanhada naquela engrenagem infernal, já bastante no fim da guerra. Senão, decerto que neste momento não estaria aqui, agora, a falar consigo…
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Queria que eu fosse jantar nessa noite a casa dela. Mas isso ser-me-ia impossível, tinha os meus compromissos e estava um casal amigo igualmente à minha espera. E eu ia apenas por dois dias, uma conferência já não me lembro sobre o quê…
Trocámos endereços. Ficámos a corresponder-nos durante algum tempo, alguns anos. Até que uma última carta não mais obteve resposta…
Chamava-se Débora – aliás, um nome de remota ascendência peninsular.
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© Myriam Jubilot de Carvalho
27 de Janeiro de 2015,
dia em que se recorda a libertação dos prisioneiros dos nazis
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Foto:
Nazi war criminals tried the defence that they were ‘following orders’.
Pictured are concentration camp prisoners as US troops liberate the Nazi concentration camp in Dachau,
Germany, 30 April 1945
Read more:
http://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-2236916/Not-just-following-orders–
Nazi-prison-camp-bosses-took-pride-doing-new-study-claimed.html#ixzz3Q88g7LCi
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Publicado por
© Myriam Jubilot de Carvalho
Dia 28 de Janeiro de 2015, pelas 15h 25m
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