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O Coelhinho Verde
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Esta manhã, dispus-me a ir a Benfica, a visitar a livraria Ulmeiro, e todo o seu fascinante mundo de livros antigos a nunca mais acabar!
Pois bem. Qual não é a minha satisfação, ao poisar os olhos num montinho de livrinhos infantis… Colecção Joaninha!
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Era esta Colecção Joaninha que fazia as minhas delícias quando fiz a aprendizagem formal da leitura! Ou antes, quando me aventurei a pegar num livrinho e a lê-lo autonomamente, durante uma tarde inteira. Teria os meus 6 ou 7 anos…
Desde os meus 5 anos que os meus Pais me ensinaram a ler. Mas eu recusava as lições! Preferia que me deixassem em paz – eu queria ir brincar, inventar meninas e pô-las a conversar umas com as outras! Era tão divertido!
Mesmo na escola primária, a leitura – a leitura formal, no livro de leitura – não me entusiasmava. No entanto, sem que ninguém notasse, nem eu própria, comecei a entusiasmar-me com pequeninos livrinhos de histórias que havia nessa época. E comecei a deliciar-me com estas histórias de encantamentos, fadas boas e gigantes maus, príncipes e princesas… E fui de tal modo conquistada pela magia dos contos tradicionais, que ainda hoje esse é um dos meus temas de eleição.
A fase de leituras mais completas, ou antes, mais complexas, surgiria quando os Tios me ofereceram uma colectânea de contos de Andersen. Aliás, para mim, a história de Amor mais bela que conheço é “A Sereiazinha” de Andersen. Vêm a seguir “Romeu e Julieta” de Shakespeare, e “Layla e Majnun” da Literatura Árabe e Persa. Mas nada ultrapassa a beleza inocente e serena, tranquila, e simultaneamente dolorosa, e ao mesmo tempo incondicional e corajosa, devotada até ao sacrifício, da Sereiazinha! Se me perguntassem que livro ou obra eu levaria comigo para uma ilha deserta, eu diria sem hesitação – “A Sereiazinha”.
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Há dias falei aqui da importância que teve para mim a história de “O Coelhinho Verde”.
Hoje voltei para casa com a bolsa recheada com este tesouro! E deixo aqui a informação bibliográfica:

“O Coelhinho Verde”
de Virgínia de Castro e Almeida
Livraria Clãssica Editora, Lisboa, 1945
Colecção contos de encantar
Bonecos de PAM
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Estive a relê-lo. Lembrava-me da essência da história, mas não dos pormenores do enredo.
Na presente leitura, o que sobressai com toda a evidência, é a intenção educativa que a Autora introduz no discurso. Há intenções morais e sociais: A saber:
-Quando nos tratam bem, é imperativo agradecer;
– Na idade avançada, não se pode trabalhar. Então, quem não tem teres nem haveres, vai pedir esmola. Mas é-se muito feliz, e não se pensa em querer ou fazer mal a ninguém.
– Por outro lado, isso permite ser livre e vaguear ao acaso, à aventura. Com muita alegria e boa disposição, e sem fazer mal a ninguém, obviamente.
– A caridade é muito bonita, é o arrimo dos desvalidos – que não são assim tão desvalidos porque são muito alegres e felizes, como referi..
– Para ultrapassar os problemas da vida, é preciso não só coragem, mas imaginação, ou seja, engenho – com a protecção das forças sobrenaturais, claro está. E o concurso da imaginação – pelos vistos, quanto mais tresloucada, melhor. Como quem diz: grandes males, grandes remédios. MAS sem rebelião. Tudo numa boa, que o povo deve manter-se sereno.
– O Bem e o Mal existem. O Bem tem que vencer o Mal – e aí, a crueldade é necessária para que o Bem saia vitorioso. Crueldade sem remorsos, sem cogitações, nem hesitações. É cortar cabeças e pronto, já está.
– O mundo está dividido em classes sociais. E as classes favorecidas dirigem-se às classes desfavorecidas com fórmulas linguísticas que denotam, se não desprezo – pelo menos, menosprezo. No entanto, a força braçal é do Povo, e o povo está alegremente disponível ao serviço dos poderosos.
– Há ainda a referir mais estas últimas marcas deste discurso subliminar:
As personificações do Bem e do Mal, sendo o Bem inerente à condição feminina:
= A parte feminina, a Mulher, representada nas quatro fases da vida: a fada Boa, modelo da Mulher na maturidade, que é quem detém o poder (enquanto não lhe é arrebatado pelo Homem) e o remédio; a avó – a sabedoria da idade; a neta – a infância, que deve seguir os bons exemplos e cooperar; a jovem, a Princesa, coitadinha, que só tem que ser bonita e fielmente esperar pelo casamento;
= A parte masculina: personificada no gigante, que é a força bruta que tem que ser eliminada; e o Príncipe, símbolo da juventude imatura, que só por si é inoperante e tem que ser manipulado… pelas mulheres.
– Está presente a chamada “sabedoria popular”, através das formulações lapidares dos ditados e provérbios: “Quem não se aventurou, não perdeu nem ganhou”. Muito adequado a um país de emigrantes.
= Por fim, o traço de beleza física que se realça, é que as beldades são todas loiras, de cabelos de oiro. Ou seja, são celtas, são visigodos, são da casta da nobreza guerreira. Nada de misturas com Moiros ou Africanos…
Concluindo – um discurso linguístico e literário bem de acordo com a moral sócio-económica do Estado Novo. Um discurso circular, sem quebras nem saídas: conservador, dualista, cruel, elitista e racista. Vencer na vida, mas deixando tudo nos seus devidos lugares, pois sabemos que quem for bom, terá a recompensa. E o que é ser bom? É vencer na vida deixando tudo tal como se encontrou, nos seus devidos lugares…
E assim se vê como um continho para crianças, que (aparentemente) trata apenas de encantamentos, fadas boas e gigantes maus, é tudo menos inocente!
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Enfim. Re-encontrei este livrinho que outrora fez as minhas delícias. E sinto-me feliz por constatar que apenas contribuiu para me cultivar a fantasia. Quanto ao mais, fiquei apta a aprender outras lições.
Continuando numa leitura de símbolos, posso dizer que re-encontro este coelhinho verde em muito bom estado de conservação, apesar do papel amarelecido pelo pó do tempo. Pois só o papel amareleceu. Infelizmente, a ideologia que contém anda a refazer-se do recuo a que se viu forçada, e anda a recompor-se a passos de mau gigante…
D. Virgínia Folque de Castro e Almeida Pimentel Sequeira e Abreu, a autora, era uma aristocrata. A sua obra bem o comprovou.
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Termino, congratulando-me por esta visita ao Espaço Ulmeiro, que me proporcionou rever e retomar o contacto com os meus velhos amigos, Lúcia e José Ribeiro.
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© Myriam Jubilot de Carvalho
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Bibliografia:
Caso alguém queira documentar-se sobre Virgínia de Castro e Almeida, deixo este artigo que encountrei na Net:
www.cerimonias.net/libecline/n2/abstracts.pdf?
ISSN 1646-7329 www.libecline.pt.tp. 1. V. Revision received November 2007.
Virgínia de Castro e Almeida and the collection «Grandes Portugueses»: books for …
http://www.cerimonias.net/libecline/n2/abstracts.pdf
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Links das imagens:
= http://2.bp.blogspot.com/_vyPcxm-fW6Y/SxDStFCnX5I/AAAAAAAAHyU/JJ_QZzNmPik/s1600/Clipboard01.jpg
= https://fbcdn-sphotos-f-a.akamaihd.net/hphotos-ak-frc1/t1/s403x403/1486755_325400777598636_615514388_n.jpg
capa do livrinho:
http://4.bp.blogspot.com/-SLTRdpYzCxY/TqfiViHBwUI/AAAAAAAAAEQ/13LEtr30_Gc/s400/IMG_4034.JPG
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Nota:
Este artigo é também publicado, a convite de José Antunes Ribeiro,
na página do FB:
Amigos do Clube do Espaço Ulmeiro
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Dia 13 de Março de 2014, pelas 24h
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