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Poucos contos tenho publicado aqui…
Hoje, trago um, muito pequeno, que publiquei no suplemento literário do extinto jornal Correio Beirão.
E como é Verão, é este:
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Oh, Mãe
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No meio da confusão. Guarda-sóis, toalhas, a areia levantada pelo vento soprando ora de N, ora de W, picando-nos o corpo desprotegido e arrepiado. O menino. Dois anos, dois anos e meio, não mais. Um menino. Cabelo loiro, liso, um tanto grifo. Um pouco de celta, um pouco de viking. Tacteante, assustado. Embora os meus filhos sejam morenos e já crescidos, foi a eles que eu senti na ansiedade do garoto perdido e reacendeu-se-me aquela luz vermelha sempre latente no coração das mães.
O garoto veio acolher-se nos meus braços, e antes que eu percebesse como, agarrou-se-me ao pescoço, “Mamã, mamã”. Peguei-lhe ao colo calmamente, pedindo aos deuses que ele não se assustasse. Saí da linha limítrofe dos guarda-sóis, onde me encontrava, para o areal livre, de maneira que quem o procurasse, pudesse vê-lo sem dificuldade.
Para o distrair, fui improvisando uma conversa que me permitisse ajudá-lo.
– Esta não é a mamã. Onde está a mamã do menino?
– Mamã, mamã – repetia, agarrando-se-me com mais força ao pescoço.
– Reconheces-me, é? – gracejei. – De onde?
– Mamã!
– Ai é? Quando foi?
– …
– Foi há muito tempo, foi?…
– Foi, foi há muito tempo – disse-me nítida e claramente uma voz junto ao ouvido, para minha total surpresa.
Num ápice, intuí que exploraria a situação ao máximo, antes que chegasse alguém.
– Ainda te lembras. É? Como é que eu era?
– Bonita. Eras muito bonita – e a voz veio novamente nítida e clara junto ao meu ouvido.
– E amiga? Achas que eu fui amiga, boa para ti?
– …
– Já não te lembras? E tu, quem eras tu?
– Cítaras…
– Cítaras? Eu tocava cítara? Tocava bem, era? Ou eras tu quem tocava?…
– As liras, flautas… As serpen…
– Zezinho! – um grito aflito surpreendeu-me, assustou-me… O garoto olhou a mãe e virou para ela os bracinhos trémulos, inseguros. Mamã, Mamã!
– O menino agarrou-se a mim – expliquei –, parece que pressentiu que eu percebi que ele andava aflito…
– Eu, minha senhora, eu é que tenho andado aflita. Foi um quarto-de-hora que pareceu um século!
– Calculo… – e não consegui dizer mais nada.
A mulher ia a tirar-mo do colo. Mas num gesto repentino, ele agarrou-se-me com força e uma voz irrompeu na minha mente – o mêtér! (1)
A mãe tirou-mo, ternamente. Ele agarrou-se-lhe ao pescoço, com intensidade. E começou a choramingar.
Lá se foram afastando. Ele soluçando copiosamente e ela dando-lhe beijos e fazendo-lhe festas, a acalmá-lo “meu menino, meu menino”.
Enquanto eu por ali fiquei, petrificada, no meio daquela confusão toda de gente que vai ao banho, que joga à bola num campo de futebol improvisado ou num rugby trapalhão, no meio da confusão dos guarda-sóis, das toalhas que não deixam um canto livre onde assentar sequer a unha do dedo grande. No meio da areia levantada pelo vento. Picando-nos o corpo desprotegido. E arrepiado.
Refugiei o olhar na grande massa azul que me fascina e tranquiliza. O mar, com os seus ciclos de marés, réplica da eternidade. Como eu entendo o pescador de Loti, os viajantes pacientes e solitários. Como gostaria de ter a sua coragem e enfronhar-me numa jangada, mares fora, em busca da derradeira aventura.
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As breves ondas da última fase da vazante deixam brincar os veraneantes, adultos ou crianças, numa mesma inocência. O grande mar, a sua força contida, esse seu tremendo desafio que passa despercebido na despreocupação do mês de Agosto. Percorro o horizonte e os olhos esbarram-me na faixa esbrazeante que reflecte o sol. A água e o fogo defrontando-se em poder, energia e beleza, cooperando uma e outro, em geral, competindo, por vezes, sem se darem tréguas. Quero contemplar, absorver, sorver, a faixa brilhante mas os meus olhos não o suportam, e tenho que os desviar.
O que foi que aconteceu? Havia um menino, perdido, na praia? Havia, sim. Havia. E eu? Eu, ajudei-o a encontrar a mãe. Foi isso. As coisas acontecem tal como a gente as narra, ou a gente narra-as tal como as imagina, ou como desejaria que acontecessem? O menino falou-me tal como a minha memória fixou, ou fui eu que delirei enquanto o distraía para ele não chorar? Ou então, ou então, foi aquela zona inexplorada da consciência que por momentos se reacendeu, aquela zona onde palavras ecoam dentro de nós, essa zona indefinida lá muito dentro do ouvido interno, ou do coração…
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Costa de Caparica, 30 de Agosto de 1993
(1) – Grego, mãe
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Suplemento NAVE, Nº 28, de 31 de Julho de 1994
Assinado Fátima Oliveira
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Imagem:
http://2.bp.blogspot.com/-fnY_SZZqn74/Tj7E0JnsYKI/AAAAAAAABlM/1TggI_hpKZw/s1600/caparica.jpg.
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Publicado por Myriam Jubilot de Carvalho
Dia 2 de Julho de 2012, pelas 6h 20m
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