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AMIGOS!
Já há pessoas interessadas neste projecto, e perguntam o que é isso da “moaxaha”. Já o expliquei noutros posts, como menciono abaixo, a seguir ao conto. No entanto, fiz este conto pois senti que assim me tornarei mais clara.
Os testemunhos sobre o aparecimento deste género poético são dos próprios historiadores e antologiadores do Alandalus, como Ibn Bassam (?-1147).
Quanto ao próprio poeta, Muqaddam Ibn Musafá (o próprio nome, vejo-o escrito com variantes), pouco se saberá… Por isso intitulei este conto, como “lenda”… A encenação que dou ao momento da criação, é evidente que é ficção minha! …Mas como interpretar esta ideia de juntar as duas línguas faladas no Alandalus numa só composição poética? Considero a própria ideia poética por si mesma!
Faço ainda referência a Omar Ibn Hafsún. Personagem que existiu, de origem na nobreza goda, e que viria a conduzir uma prolongada revolta contra o poder dos senhores de Córdova, e que me fazia falta para a localização temporal da acção. A data que refiro corresponde ao seu regresso do Norte de África e é anterior à referida revolta. Este Omar Ibn Hafsún teve apoio popular, de Moçárabes e Berberes.
O meu gosto por este aspecto particular da Poesia do Alandalus advém desta sobreposição, e fusão, das diferentes culturas num mesmo espaço territorial – nem os conflitos conseguiram evitá-la!
Então, segue o conto, e espero que traga algum contributo aos interessados em aprofundar a nossa relação com esta época do nosso Passado histórico.
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Lenda de Muqaddam Ibn Mu’afá, Al-Cabrí
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Dedico este breve ensaio à memória de minha avó
Maria Carlota da Ascenção Jubilot.
Myriam Jubilot de Carvalho
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Madrugada. Suave, a brisa refrescava o alpendre a um canto do jardim. Grande, o grupo que desde o cair da tarde ali se ia juntando em volta da fogueira que os escravos não deixavam esmorecer. A primavera já se instalara mas as madrugadas eram ainda muito frias, ainda se sentia a necessidade do conforto das mantas de peles e de lã de ovelha em entrelaçados brancos e castanhos, estendidas ao longo dos largos almofadões. E havia também muito com que aquecer o corpo, por dentro. Não faltavam os vinhos, os assados, os frutos, mas também os sumos, e para os mais enregelados, as infusões de ervas aromáticas, ou as vigorosas aguardentes, as xinitas. E havia ainda, a par do estímulo de companhias esbeltas, delicadas, perfumadas, primorosamente vestidas, sedutoras, os apelos da conversação, dissertações sobre a situação agitada que se vivia no Emirato, e acima de tudo as controvérsias sobre o sentido da vida, seus prazeres e sua efemeridade, e o sentido do amor.
Muqaddam Ibn Muafá, o cego de Cabra, fazia parte daquele grupo, pois os longos serões exigiam a presença dos poetas consagrados. Corria o ano de 880. Ibn Hafsún, o proscrito, regressava do Norte de África e era recebido com todas as honras no belo castelo. E aquela noite iria ficar memorável. Não só pela presença de Omar Ibn Hafsún, mas porque este sarau iria ter grande repercussão na Poesia das Hispânias.
O velho Muqaddam tinha estado à altura das expectativas, apesar da comparência doutros poetas cortesãos e da concorrência que entre eles se estabelecia. Tinha dito poemas doutros poetas, tinha cantado, tinha dito poemas seus já antigos, tinha improvisado outros mais. Uma noite de glória. Mas chegou o momento em que o frio começou a apertar, já se sentia velho, tinha os ossos enregelados. Pediu licença para se recolher.
Muqaddam chegava agora ao seu aposento, um recanto abrigado que lhe reservavam na zona da criadagem. A sua amiga favorita, uma jovem escrava do serviço das cozinhas, acendia para ele um caldeirão de brasas e colocava-lho no meio do aposento. Como sempre, chegava um tanto tonto, a noitada, a escrava que habitualmente se ocupava dele no decurso do repasto, enternecida pelos seus olhos sem vida, o jovem copeiro que solicitamente lhe renovava o recheio da taça… Muqaddam chegava no seu andar pesado, lento, cauteloso. Naquela madrugada, porém, não eram só os vapores do álcool… Apoiado ao jovem copeiro, conseguiu sentar-se.
– Senta-te aqui ao meu lado – pediu ao jovem. – Tenho aí onde podes escrever, pega numa pena, tenho as palavras a dançarem-me na mente…
Distendeu as pernas, pesadas da gota e do álcool. À sua mente meio adormecida, meio estimulada pelas sensações ainda despertas pelas vivências da noite, ocorreu uma ideia, uma coisa esquisita, que não soube definir…
Muqaddam fechou os olhos… A brisa fria continuava a entrar pelas frinchas do postigo, cantava-lhe qualquer coisa que ele não conseguia agarrar… Desapertou o cinturão bordado a lantejoulas, o fivelão de prata… Fechou os olhos para olhar interiormente a sensação indefinida…
…Era a avó. Era a avó quem cantava. Cantava uma canção de outras eras, uma canção que aprendera na infância quando acompanhava a mãe à fonte ou a ir lavar a roupa na ribeira… E cantava-a em adulta, durante as duras lidas da horta, ou quando se sentava ao tear… As antigas palavras dançavam na extremidade de um raio de sol que nascia, bruxuleavam na chama da candeia ainda acesa – mas ele não podia vê-las…
Sentado aos pés do leito, tacteou, procurando o alaúde. Tentou dedilhar um poema, uma canção… Aquela canção… Tantas vezes a tinha ouvido, com a displicência dos jovens que dizem para consigo “Esse tempo já lá vai”… E nessa noite, as cantadoras tinham entoado a mesma copla… Tentou dedilhá-la, sorriu satisfeito quando lhe apanhou a toada, continuou… A mesma copla, e tantas outras, semelhantes… Tinha sido uma noite diferente, aconteceu por acaso, sem se perceber como. Talvez que a presença de Omar Ibn Hafsún, o nobre descendente de godos, os seus relatos das saudades da sua terra, dos seus amigos, da família… A descrição dos perigos que tinha corrido… Assunto poucas vezes abordado, houve quem se lembrasse de falar, mesmo que de forma indirecta, das suas origens de antanho, referindo a naturalidade óbvia e incontroversa da conversão, as suas vantagens, não só as materiais, certamente, mas sobremaneira as espirituais também… No fundo, tinha acontecido que todos se tinham regozijado por ali estarem, todos juntos, falando do tempo antigo, contando histórias de família, histórias de falecidos vizinhos, comparando duas religiões, duas filosofias, dois modos de vida… Todos os convivas se tinham sentido irmanados num sentimento de unidade, os acepipes nessa noite tinham sabido melhor. E tocadores, tocadoras e cantadeiras, todos sem excepção, tinham colaborado de forma desusada. Até as mulheres tinham assomado às janelas, lá em cima, as cabeças descobertas, para fora das portinholas de rexas. Foi Ibn Hafsun quem as chamou! “Desçam daí, mulheres de Deus, juntem-se à gente!” E a desculpar-se, para o seu anfitrião – “Elas é que sabem disto!” Daí, a grande surpresa! A grande surpresa dessa noite, tinham sido as cantadoeiras jovens quem tinha trazido à lembrança dos presentes, de forma espontânea, solta, à vontade, numa noite de justas poéticas sem fim, tinham trazido de novo à vida a antiga poesia do povo… Afinal, a poesia do povo não estava esquecida… Toda a minha gente sem excepção, liberta a saudade pela suavidade que o bom vinho desperta nos corações amorosos, todos tinham cantado as velhas coplas em que as moças donzelas faziam as suas queixas das suas coitas de amor à mãe, ou confessavam ao ingrato namorado que sem ele não poderiam viver…
– Que dizes? – perguntou ao jovem. – É isto, não é?
– Sim, mestre, acho que vai muito bem.
– Então, canta comigo…
Mamma ayy habibi
sua al-gumella saqrella
e el qollo albo
e bokella hamrella
– Ainda sabes o que isto quer dizer? – perguntou Muqaddam.
– Sim, mestre, a minha mãe ainda canta estas coisas. E é assim que ainda se costuma falar na minha casa… – E acompanhando-se ao alaúde, cantou em árabe:
Mãe, que amigo!
A cabeleira é ruivita
O colo branco
e vermelha, sua boquita
– É o que isto quer dizer? Bem me parecia… – E insistiu – Continua, continua! Vocês deram-me uma noite de sonho! Eu nunca tinha ligado a estas cantigas, e agora estão a parecer-me tão belas! Parece que as oiço pela primeira vez!…
O jovem prosseguia, incansável, sem sono, contagiado pelo entusiasmo do cego, cantando no seu dialecto original, o dialecto popular, o linguajar dos cristãos arabizados, e depois, transpondo para árabe, a refrescar a memória do velho mestre.
Ké faré mamma
mio al-habib est ad yana
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Que farei, mãe,
O meu amigo está à porta
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Sabes ya mio amor
ke kata-me el morire
imsí, ya imsi, ha bibi
no se, sin te ber, dormire.
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Já sabes, meu amor,
que sem ti vou morrer…
Vem, oh, vem, meu amigo,
Como posso dormir, sem te ver?
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O sol saía agora completamente. Cantava a primavera na brisa ainda fresca da manhã. O velho aedo disse ao ajudante:
– Esta manhã, estás por minha conta! Vamos fazer uma coisa, e vai ser mais complexa que um jogo de xeiques! Vais estar com toda a atenção, não quero enganos!
– E o que será isso assim tão importante, mestre?
-Vais escolher aí uma copla dessas. Escolhe mesmo a que mais te agradar! Canta-a lá para eu ouvir:
Tanto amare tanto amare
habib tanto amare
enfermeron olios nidios
e dolen tan male.
– Muito bem! É linda, mesmo linda! – O velho pensou um pouco… – Agora, vamos arranjar rimas, quero palavras, ajuda-me a pensar!
– Rimas, mestre?!
– Sabes o que são rimas, não sabes?! Então, vá lá! Pensa em palavras, palavras simples, que rimem umas com as outras!
– …Palavras árabes?
– Não percebes?! Coisa fácil: quero palavras árabes, mas palavras simples, e que façam rima entre si!
– Mestre! Como vou conseguir isso?
– E para que queres tu a cabeça – para o cutelo?
– Não! Claro que não! – O jovem respirou fundo a recuperar o fôlego. – Mestre, não me diga essas coisas, já sabe que eu não gosto.
– Fizeste mal a alguém? Não fizeste, pois não?
– Não, mestre, não faço mal a ninguém, mas… Ibn Hafsún andou fugido …
– Porque matou um homem e teve que se proteger da desforra da família do morto. Não sabias? Mas ele agora foi perdoado, deixa lá isso. Não faças tu mal a ninguém, é o que interessa. Bem, e deixemo-nos de coisas, vamos às palavras! Quero fazer um poema novo!
– Então e a copla cristã?
– Oh! Essa vai ser a grande novidade neste poema – vamos usá-la como remate!
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Naquela noite terá nascido, de facto, um poema novo. …Segundo a tradição, Muqaddam escolhia primeiro as palavras coloquiais, despretenciosas, para que comandassem as rimas do poema que ia fazer nascer; depois construía um pequeno poema estrófico – pequeno, mas complexo como um jogo de xeiques: em primeiro lugar um mote, com seus dois versos e a rima previamente escolhida; depois, uma estrofe onde nos seus primeiros três versos mudava a rima e nos dois seguintes, voltava à rima inicial, estribando-se nela para dar movimento e unidade à construção; seguindo-se depois mais umas tantas estrofes, sempre nos mesmos moldes; e para finalizar, como ele próprio dizia, uma homenagem à avó e à mãe com quem tinha aprendido a cantar – a bela estrofe da lírica dos seus antepassados cristãos, que rematava o poema como uma finda, uma saída. Um estranho poema que condensava num só sentimento, numa só expressão, as suas duas Línguas, e as suas duas Culturas! Um poema ornamentado, em duas Línguas, como um colar de pérolas de duas voltas, forte e eterno, como o seu cinturão de lantejoulas. Por essas ambas razões, lhe chamou MOAXAHA.
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Posts anteriores, sobre este tema:
Pode-se ver em:
1 – Poesia, dia 18 de Fevereiro de 2012,
Estudos e Notas, igualmente um post do dia 18 de Feverieo de 2012;
2 – Os três posts do passado dia 3 de Agosto, na categoria Poesia.
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Além das minhas recordações de algarvia, colhi informação para o banquete deste conto, em:
“Así vivieron en al-Ándalus – la historia ignorada” – de Jesús Greus – col. Biblioteca básica, Historia – Editora Anaya – Madrid, 2009
No entanto não segui à risca a informação prestada neste excelente livrinho. Numa noite tão feliz, os corações falaram mais alto e as minhas personagens deixaram-se conduzir pela inspiração, pela emoção, pelo prazer do reencontro informal através dos paladares, da música, e do canto.
Imagens da Net:
http://arquehistoria.com/wp-content/uploads/2008/11/moda_arabes-cristianos.jpg
http://vieuxsinge.blog.lemonde.fr/files/2008/10
/saintmichel1.1222850971.jpghttp://cadernosdedanca.files.wordpress.com/2010/07/alaude.jpg
Quanto a imagens e melhor ilustração:
É muito difícil encontrar imagens apropriadas, disponíveis, na Net. Ao fim de uma pesquisa de três horas ou mais, só consegui as que aqui deixo neste momento…
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Conto, inédito, de Myriam Jubilot de Carvalho
Publicado no dia 6 de Agosto de 2012, pelas 12 horas
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