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SETE PAISAGENS
Um avião, cada vez mais longe
brilhando, branco, sob as nuvens esbranquiçadas.
As gaivotas, pontos brancos, boiando
na ondulação branca do Rio.
Os silos, a Trafaria,
toda a Costa, ao longe, em minúcias de prédios brancos.
Marcando o horizonte, a negrura do pinhal.
E o Rio, esse eterno marulhar
na gama completa da paleta fria.
Quem diria, ó Primavera –
Este ventinho cortante e húmido,
nem a areia aqueceu.
Não muito longe, sozinho, erecto nessa nesga de Sol fugidio…

…o farol do Bugio,
o farol do Bugio
***
A noite desfaz-se em água.
Há pouco, campânula difusa, quente, asfixiante dos inícios de Verão, as nuvens, baixas, absorviam as luzes da cidade.
Subia, em crescendo, o ruído soturno dos carros.
Passou uma aragem. Suavemente. Levou consigo a campânula de luz.
Cessaram os pregões do circo, os altifalantes da feira pagã.
Neste Verão exterior aos cânones do tempo, a noite desfaz-se em água.
Em silêncio,
pulsa, sufoca, o coração do Universo
***
Outono,
As copas das árvores. Respondendo ao apelo da aragem perpassante pelas ruas, deixando-se afagar. Afago flutuante, libertação das folhas amarelecidas.
Os canários. Respondendo-se uns aos outros, cantando nos quintais em magnificat. Ignorando os muros que os separam.
Mergulharam na névoa os paralelipípedos desengraçados, debotados, ensurdecidos, amassados. Pelo rugir dos cifrões.
Velas de fragatas conciliando no Tejo
Velas imemoriais
Formas esquecidas
Para dores iguais
***
Metáfora do futuro – a folha, o deserto,
sob o foco inquiridor
dos teus ritmos binários
Voltas e voltas à pista – onde está o
novo grito? – ostinato cantabile
Na falta de papel –
onde morrer?
***
A toada louca dos canaviais

aqui. Onde o vento ora geme, ora clama “A princesa
tem orelhas de burra! A princesa tem orelhas de
burra.” Morrer nesta curva. Desta estrada, aqui. Onde as
palavras nascem do meu corpo como as flores, da
laranjeira, como as maçãs da macieira, como as
uvas do pinhal. Aqui, onde não sei sementes que
me fecundem. Nem adubos, que me acrescentem. Aqui,
onde o
vento, indolente, continua a toada “A princesa
tem orelhas de burra! A princesa tem orelhas de
burra.”
Falar. Escrever! Terá seu preço?
Enlouqueço. Com este vento, invejoso. Que ora
geme, ora clama “A princesa tem orelhas de burra!
A princesa tem orelhas de burra”
***
O dia vai chegando ao fim. As melodias das
ondas tomam a forma dos toucados da noite.
Pintei os olhos, os lábios. O rosto. E as
unhas.
Respiro. Respiro profundamente. Antes de
olhar em volta.
Ah, o perfume. Faltava o
perfume. Das horas. Da balança.
Amanhã.
A criança
***
As tuas mãos são a seiva do meu corpo.
As tuas mãos. Extasiadas do voo das árvores, dos bailados do vento, do viajar sem fim das águas de todos os rios. As tuas
mãos. Comovidas do iníquo abandono das gentes sem condição. Cansadas, magoadas, feridas. Perdidas as unhas de escavar na esperança. Caladas, fechadas,
ressequidas.
As tuas mãos. Que apanham as sementes dispersas pelo chão e as guardam e disseminam, in memoriam dos frutos não colhidos.
Bandeja de fogo
As tuas mãos

são o ventre do meu corpo
Conjunto publicado no volume XVI
da “Viola Delta”
Outubro – 1991
Edições MIC
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Publicado aqui, em 26 de Setembro de 2009
